quinta-feira, 14 de junho de 2007

O Cão Andaluz/ A Idade de Ouro


Bem, voltando a escrever sobre obras-primas do cinema, retorno aos filmes de Luis Buñuel, concentrando-me em suas duas primeiras obras, O Cão Andaluz e A Idade de Ouro, radicais experiências surrealistas, clássicos incontestáveis do cinema mundial.
Esses dois primeiros filmes de Buñuel (ainda mais por terem sido feitos em parceria com Salvador Dali) são mesmo de pirar a cabeça de qualquer espectador, surrealistas ao extremo e anárquicos por excelência. O primeiro, O Cão Andaluz, a despeito de suas quase oito décadas de existência, ainda é em seus dezesseis minutos de duração o curta-metragem mais famoso, original e importante da história do cinema. Os franceses estavam a uma década obcecados em novas formas da então novíssima linguagem cinematográfica, mais especificamente, realizando experiências de vanguarda geralmente com resultados bastante próximos do abstrato e do dadaísmo. Cão Andaluz não chegou a ser a primeira experiência surrealista do cinema. A honra coube á La Coquille et lê Clergyman, dirigido por Germaine Dulac a partir de um argumento do poeta Antonin Artaud. Cão Andaluz é uma estranha combinação de imagens paradoxais e aparentemente desarmônicas (quase que um aspecto semelhante à dita montagem de atrações, de Eisenstein), uma incessante busca do insólito, do gratuito e do absurdo, como que de encontro a novas formas de metáforas poético-visuais, resultando em efeitos advindos de uma exploração do inconsciente humano, ou então do puro acaso, transpondo um universo onírico, caótico.

O filme começa com a supracitada cena do olho aberto por uma navalha de barbear, em paralelo com a Lua sendo atravessada por uma nuvem negra. Uma das imagens mais emblemáticas do cinema, porém um emblema desprovido de significados. Cada espectador interpreta esse momento com o que essa imagem possa representar para si mesmo. Pode ser o corte da vida pela morte, o corte de um amor pelo abandono, o corte traumático da virgindade por uma má iniciação... Tanto faz. O inconsciente de cada olhar poderá conferir significado às imagens dessa obra-prima surrealista, mesmo que nenhuma interpretação possa ser considerada definitiva e nem totalmente satisfatória, muito menos coerente com as intenções dos realizadores, que juram que não tinham intenção alguma ao confeccionar o célebre curta-metragem.

Outras cenas delirantes se sucedem: formigas saindo de um inexplicável buraco na mão do homem, ou, um pouco antes, quando este adquire feições animalescas ao agarrar a mulher amada. Esta se desprende do sujeito, e quando ele tenta segurá-la entre os braços novamente, o homem é impedido de tocá-la por ele se encontrar preso por duas extensas cordas em que estão enlaçadas algumas abóboras, dois religiosos e um piano amarrado com jumentos mortos. Aos que pretenderam interpretar o filme como uma combinação do surrealismo com a psicanálise, essa cena bastante alegórica poder-se-ia explicar da seguinte maneira: O Amor (impulso do homem) e a sexualidade (as abóboras) são contrariados (as cordas) pelos preconceitos religiosos (os seminaristas) e pelos conceitos da burguesia (o piano). Como já havia referido agora a pouco, Buñuel seria o primeiro a desmentir qualquer interpretação simbólica nessa sua obra de estréia. Para ele, o roteiro do filme é formado por imagens surpreendentes e absurdas sem significado algum, um filme experimental em que a forma seria mais importante que qualquer conteúdo. “No fundo, não é nada mais do que um desesperado, um apaixonado apelo ao crime”, resumiria o cineasta espanhol. Se bem que sou daqueles que pensam que, depois de lançada ao mundo, os significados de qualquer obra deixam de pertencer exclusivamente ao realizador, passando para o espectador a tarefa de com os olhos apurados e mente aberta extrair todo tipo possível de simbologia no contexto da obra de arte (desde que cada interpretação seja perfeitamente plausível, diga-se de passagem).
Mesmo com essas descrições aparentemente malucas das imagens criadas por Buñuel e Dali, ao espectador curioso e de mente aberta O Cão Andaluz vai sempre representar uma experiência sensorial absorvente, a despeito de que ao longo das décadas o filme vem causando atração ou repulsa aos olhos de quem o vê. Particularmente, acho que mesmo não o entendendo, O Cão Andaluz fascina mais facilmente, ao contrário do posterior A Idade de Ouro, onde continua valendo a questão do aparente desprovimento de significados de suas imagens. Só que aqui não há o mesmo tour-de-force delirante de cada fotograma do curto e conciso O Cão Andaluz, que faz com que para muitos seja uma experiência absolutamente fascinante, porém esse segundo filme é de um longa-metragem sonoro relativamente mais contido, com a maioria de suas cenas aparentemente mais banais (mas só na aparência), e um tom quase próximo do documental (impressão advinda de uns fragmentos de cine-jornal de um documentário sobre escorpiões, que abrem o filme), mas nem por isso menos estranho e surreal. Há quem diga que era uma tentativa de abolir de uma vez certas tendências gratuitas da vanguarda francesa da década de 20, sendo considerado o ponto final dos cinemas dadaístas e surrealistas ortodoxos daquela época. Que seja. O que importa é que é o filme mais virulento e transgressor de Buñuel. Nessa fase de transição, A Idade de Ouro representa uma ponte com todo o posterior cinema de narrativas relativamente mais usuais de Buñuel, com sua rebeldia e inconformismo diante das convenções estabelecidas, nunca abrindo mão de inserir cenas surreais e oníricas, cheias de uma dureza e de um humor corrosivo nem sempre fáceis de assimilar num primeiro olhar.

Buñuel e Dali inspiraram-se em alguns temas de Freud, do Marquês de Sade e de Karl Marx para criar o argumento de A Idade de Ouro. Mesmo assim, durante a produção, Dali se desligou do projeto, sendo que a única cena que ele criou foi a que um personagem anda com uma pedra na cabeça igual à estátua que ele acabara de cruzar. Dessa vez, o protagonista é um anti-herói subversivo e herege que, ao mesmo tempo em que costuma chutar cachorros de rua, condena hábitos de caridade espancando um mendigo, desafia as convenções sociais fingindo servir à sociedade (numa cena, ele esbofeteia uma senhora apenas porque essa acidentalmente derramou um pouco de bebida em sua roupa), sempre movido por seus impulsos sexuais e selvagens, quase místicos. De fato, quase que um precursor de Alex Delarge de Laranja Mecânica de Stanley Kubrick. Em A Idade de Ouro, uma história de um amor louco jamais concretizado, o ódio e o sexo perpassam por toda a película(Buñuel chega a inserir em algumas cenas objetos com aparência de órgãos genitais, como em um momento que mostra os dois namorados beijando-se impetuosamente). Mesmo que os impulsos irresistíveis façam com que o protagonista caia nos braços do personagem principal feminino do filme, esta nunca está satisfeita com o seu amor. Além de cenas que sugerem a masturbação da personagem, (como a que ela chupa os dedos de uma estátua), no final ela o abandona para se unir a um regente de orquestra. O anti-herói dá vazão a toda a sua fúria jogando para fora da janela uma árvore em chamas, um bispo e uma girafa de pau.

Aqui as imagens não querem soltar apenas o inconsciente, mas também libertar os homens das amarras sociais impostas pela sociedade, pelas instituições (mesmo que não haja significados, a não ser os que repousam na psique de cada um). Numa das cenas, durante uma elegante reunião de burgueses, vê-se atravessar pela sala carroças dentro das quais trabalhadores bebem vinho tinto. A indiferença com a aristocracia presente trata desse fato é a mesma com que numa outra cena uma mulher ordena para que uma vaca deitada em sua cama se retire do quarto.

No final, uma rebelião extermina centenas de pessoas por causa dessa indiferença toda. Os quatro sobreviventes desse massacre, após 120 dias de orgia (trecho adaptado da história de Sade), são vistos saindo do castelo em direção à Paris, guiados pelo Duque de Blangis com uma indisfarçável aparência de Jesus Cristo (o próprio!). Desfecho brilhante e totalmente coerente com os propósitos do mestre do surrealismo sempre disposto a construir suas provocantes críticas à sociedade, no caso do final de A Idade de Ouro, uma cena que mereceu de Henry Miller um artigo intitulado com muita propriedade de Orgia Divina.

Para encerrar exemplificando toda a polêmica desse filme, basta dizer que, depois que os cinemas na estréia do filme tiveram suas sessões impossibilitadas pelos atos de vandalismo dos radicais que destruíram poltronas e atiraram bombas sobre a tela, A Idade de Ouro foi interditado na França por cinco décadas inteiras! Depois desses filme, Buñuel teve que partir para a Espanha, onde assumiu de vez uma tomada de consciência social realizando um documentário sobre as péssimas condições uma região miserável de seu de seu país, visto por muitos críticos quase que como um prenúncio do terror da Guerra Civil Espanhola. De qualquer modo, sem conseguir financiamento para filme qualquer na Europa, acabou indo para o México, onde começou realizando filmes comerciais, melodramas musicais baratos. Mas sua força criadora permaneceu viva e, quando no mundo civilizado ninguém lembrava mais dele, ressurgiu realizando grandes filmes que jogaram os holofotes novamente em torno dele, possibilitando que ele retornasse à Europa para realizar na Espanha a obra-prima Viridiana, prontamente causadora de muitas polêmicas e logo proibida, o que fez com que Buñuel se retirasse da Espanha novamente para regressar ao México e dirigir o seu melhor filme: O Anjo Exterminador(comentado outro dia aqui nesse blog).






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