Embora a intenção principal desse blog seja escrever sobre filmes mais obscuros, não resisti a vontade de discorrer sobre o clássico SHANE(1953), após revê-lo nesse último domingo, um filme que redefiniu e consolidou algumas das principais tendências do faroeste (cinquenta anos depois de O Grande Assalto do Trem ter inaugurado o gênero) e criou um dos mais célebres motes do cinema: o herói solitário vindo ninguém sabe de onde que chega em um local para livrar a população da opressão dos poderosos do lugar (um mote que seria repetido infinitas vezes em vários outros filmes posteriores, inclusive os de Sérgio Leone). Se por um lado isso por si só faz de Shane um verdadeiro marco, também não deixa de ser verdade que por ter sido tão imitado, copiado e retomado, o filme pode se apresentar aos olhos atuais como um tanto quanto datado e envelhecido, ainda mais pelo gênero ter tido tantas releituras mais cínicas e ultraviolentas pelas mãos de gente como Sam Peckinpah e do próprio Leone (bem como de todos os western-saguetti em geral). Soma-se a isso o fato de que George Stevens não é idolatrado pela maioria dos cinéfilos como um legítimo autor, não obstante os clássicos que realizou, o que faz com que seus filmes estejam num patamar de admiração menor do que mesmo os faroestes de outros cineastas mais consagrados. À parte disso, confesso que a principio o tom bucólico de OS BRUTOS TAMBÉM AMAM me incomodou, deixando o filme um tanto ingênuo e pueril, e a música de Victor Young estava me irritando. Mas não demorou muito para que as qualidades do filme se impusessem, confirmando que o filme ainda é um espetáculo notável. E mesmo a trilha de Young é muito bonita, evoluindo em meu conceito a medida que o filme estava crescendo. Uma tensão muito forte perpassa grande parte da obra como prova de que o brilho de um autêntico clássico jamais se apaga diante de seus sucessores e de suas imitações ao longo dos anos. Como já foi dito, o argumento é o mesmo de muitos outros faroestes que se seguiram, mas SHANE tem a diferença decisiva de ser mais tocante do que qualquer outro western. E tudo em SHANE se apresenta com harmonia. O roteiro é um dos mais bem construidos do gênero, a direção de Stevens é perfeita e a fotografia de Loyal Griggs é de encher os olhos, uma das mais belas do cinema. É a melhor já vista em qualquer exemplar do gênero. E eu não lembro de faroestes antes de SHANE ter um vilão tão assustador como o demoníaco pistoleiro interpretado por Jack Palance, uma figura esguia trajado de negro e sorriso cruel na face medonha, uma das mais fortes representações da morte no cinema. Um vilão que só poderia ter como antagonista um herói (encarnado por Alan Ladd) dos mais admiráveis, cheio de retidão, amargura e senso de justiça. Para no fim voltar ao desconhecido depois de ter livrado a população de todo o mal, baleado, ferido, numa bela cena de despedida, com Shane cavalgando para o mais longe possível, com o vale ficando para trás, bem distante...
terça-feira, 19 de junho de 2007
A Bela da Tarde
Em meados da agitadíssima década de 60, após já ter construído uma gloriosa carreira de grandes filmes (a maioria verdadeiras obras-primas), Buñuel pôde sair do México para voltar a filmar na França, quase quarenta anos depois de ter sido praticamente expulso de Paris após a escandalosa, tumultuada e maldita exibição do clássico surrealista A Idade de Ouro, prontamente interditado na época. Na verdade, no final dos anos 50, em meio à sua carreira mexicana, o cineasta espanhol realizou três filmes na França (Cela s’Appelle l’Aurore e La Mort em ce Jardin), ao mesmo tempo em que também filmou na França (Viridiana) e até nos Estados Unidos (The Young One), para logo em seguida voltar ao México e realizar o extraordinário O Anjo Exterminador. Depois de um outro filme francês (O Diário de uma Camareira), ele faria o seu último filme mexicano (Simon del Desierto), para voltar ao solo francês e se estabelecer em definitivo em Paris, consagrando-se com o absoluto sucesso de público e de critica de A bela da Tarde, de 1967.
"Belle de Jour foi talvez o maior êxito comercial de minha vida o qual atribuo mais às prostitutas do filme do que propriamente ao meu trabalho", diria o cineasta. De fato, talvez seja o filme mais nelsonrodrigueano que já tenha sido feito no mundo, pelo menos fora do Brasil. Para um fanático que nem eu pela obra do dramaturgo carioca, a associação de seu nome com o filme de Buñuel é quase inevitável. Pena que aqui no Brasil não houvesse gênios o suficiente para filmar histórias do Nelson com a qualidade vista em A Bela da Tarde (esse é o típico filme, na época em que as produções brasileiras investiam pesado em sexo e nudez, que por aqui tantos tentaram fazer porém nunca conseguiram) . Mas deixemos o escritor brasileiro de lado, mesmo porque seu nome não tem nada a ver com o filme de Buñuel, que é uma adaptação do romance de Joseph Kessel. Uma estranha e fascinante mistura de realidade e imaginação, fatos e devaneios, verdades e sonhos, na insólita história das desventuras de Séverine Serizy (a deusa Catherine Deneuve, mais atraente do que nunca), a delicada, sedutora e entediada esposa de um médico burguês com quem mantém uma fria e distante relação, e que, atraída pela prostituição, resolve freqüentar durante as tardes um bordel parisiense que encontrara quase que por acaso, onde se envolve com situações diversas e se relaciona com um estranho e violento marginal (talvez o mais sincero de todos os personagens que desfilam pelos fotogramas do filme de Buñuel). Ela carrega certa frustração emocional e sexual bastante forte, com necessidade de rever conceitos e satisfazer anseios e impulsos sufocados em sua vida esmaecida. Severine precisa respirar, quer emoção, perigo e aventura, ou simplesmente deseja experimentar o desconhecido, arriscar-se no terreno do que não lhe é permitido. A principio receosa, ela acaba-se se entregando as todas às suas taras, desejos e obsessões recalcados, visto que ela se satisfaz com o ultraje físico e moral, libertando suas perversões de burguesa enfastiada, contrariando os ditames do catolicismo e da hipocrisia social, que a aprisionavam, e contra os quais Buñuel dirige sua severa, violenta e habitual crítica devastadora. Séverine sucumbe aos açoites, à submissão e humilhação sexual, lama na cara e outras agressões verbais (tipo “puta” e “vagabunda”).
Quantas mulheres devem ter esses mesmos desejos que Severine, querer ter uma vida (ou pelo menos, um dia) de Bela da Tarde? O mais provável é que a maioria mal admita para si mesma essa idéia. O recado de Buñuel é que se tais desejos forem ignorados, podem destruir, dilacerar brutalmente a personalidade e os mais caros laços de afeto por si mesmo de cada individuo, como ilustrado no desfecho do filme, que sugere que aquela vida dupla de Severine não tenha puramente passado de fruto do êxtase do seu imaginário infeliz, um sonho em suspenso. Mesmo com tanta intensidade, Buñuel não se excede nas diversas e delirantes situações eróticas do enredo, construindo com segurança e rara sutileza e equilíbrio uma insinuante história de sexualidade reprimida, sem que em nenhum momento resvale na pornografia ou caia em qualquer tipo de exageros (mesmo as cenas de nudez são muito poucas).
No inicio do filme, Séverine está a passear com o marido quando este ordena que ela desça do carro de viagem e pede aos cocheiros que a chicoteiem violentamente, cena de gozo pessoal da protagonista seguida por uma outra cena de violação, tudo sonho e fantasia da mulher mal-amada. Quem garante que as cenas no bordel não seriam também resultados dos devaneios que a infeliz esposa habituara-se a viver? Buñuel não deixa nada explicado, e o que resulta numa deliciosa dúvida a que a platéia não precisa se dar ao trabalho de resolver. Como nas melhores obras do mestre, tudo não passa de um convite do cineasta espanhol para que se sintam seus filmes, para que a gente se entregue a viagem percorrida pelos personagens, mesmo que nem sempre os compreendamos. Não que A Bela da Tarde seja demasiado obscuro, difícil ou incompreensível. Longe disso: talvez seja a mais acessível de suas obras ao grande público. Quase que impossível que alguém não se envolva pela trajetória de Severine e sua irremediável solidão, em paralelo com os homens que cruzam o seu caminho. Mesmo porque, caso a algum espectador a história não agrade, sempre haverá Deneuve como colírio durante toda a sessão.
"Belle de Jour foi talvez o maior êxito comercial de minha vida o qual atribuo mais às prostitutas do filme do que propriamente ao meu trabalho", diria o cineasta. De fato, talvez seja o filme mais nelsonrodrigueano que já tenha sido feito no mundo, pelo menos fora do Brasil. Para um fanático que nem eu pela obra do dramaturgo carioca, a associação de seu nome com o filme de Buñuel é quase inevitável. Pena que aqui no Brasil não houvesse gênios o suficiente para filmar histórias do Nelson com a qualidade vista em A Bela da Tarde (esse é o típico filme, na época em que as produções brasileiras investiam pesado em sexo e nudez, que por aqui tantos tentaram fazer porém nunca conseguiram) . Mas deixemos o escritor brasileiro de lado, mesmo porque seu nome não tem nada a ver com o filme de Buñuel, que é uma adaptação do romance de Joseph Kessel. Uma estranha e fascinante mistura de realidade e imaginação, fatos e devaneios, verdades e sonhos, na insólita história das desventuras de Séverine Serizy (a deusa Catherine Deneuve, mais atraente do que nunca), a delicada, sedutora e entediada esposa de um médico burguês com quem mantém uma fria e distante relação, e que, atraída pela prostituição, resolve freqüentar durante as tardes um bordel parisiense que encontrara quase que por acaso, onde se envolve com situações diversas e se relaciona com um estranho e violento marginal (talvez o mais sincero de todos os personagens que desfilam pelos fotogramas do filme de Buñuel). Ela carrega certa frustração emocional e sexual bastante forte, com necessidade de rever conceitos e satisfazer anseios e impulsos sufocados em sua vida esmaecida. Severine precisa respirar, quer emoção, perigo e aventura, ou simplesmente deseja experimentar o desconhecido, arriscar-se no terreno do que não lhe é permitido. A principio receosa, ela acaba-se se entregando as todas às suas taras, desejos e obsessões recalcados, visto que ela se satisfaz com o ultraje físico e moral, libertando suas perversões de burguesa enfastiada, contrariando os ditames do catolicismo e da hipocrisia social, que a aprisionavam, e contra os quais Buñuel dirige sua severa, violenta e habitual crítica devastadora. Séverine sucumbe aos açoites, à submissão e humilhação sexual, lama na cara e outras agressões verbais (tipo “puta” e “vagabunda”).
Quantas mulheres devem ter esses mesmos desejos que Severine, querer ter uma vida (ou pelo menos, um dia) de Bela da Tarde? O mais provável é que a maioria mal admita para si mesma essa idéia. O recado de Buñuel é que se tais desejos forem ignorados, podem destruir, dilacerar brutalmente a personalidade e os mais caros laços de afeto por si mesmo de cada individuo, como ilustrado no desfecho do filme, que sugere que aquela vida dupla de Severine não tenha puramente passado de fruto do êxtase do seu imaginário infeliz, um sonho em suspenso. Mesmo com tanta intensidade, Buñuel não se excede nas diversas e delirantes situações eróticas do enredo, construindo com segurança e rara sutileza e equilíbrio uma insinuante história de sexualidade reprimida, sem que em nenhum momento resvale na pornografia ou caia em qualquer tipo de exageros (mesmo as cenas de nudez são muito poucas).
No inicio do filme, Séverine está a passear com o marido quando este ordena que ela desça do carro de viagem e pede aos cocheiros que a chicoteiem violentamente, cena de gozo pessoal da protagonista seguida por uma outra cena de violação, tudo sonho e fantasia da mulher mal-amada. Quem garante que as cenas no bordel não seriam também resultados dos devaneios que a infeliz esposa habituara-se a viver? Buñuel não deixa nada explicado, e o que resulta numa deliciosa dúvida a que a platéia não precisa se dar ao trabalho de resolver. Como nas melhores obras do mestre, tudo não passa de um convite do cineasta espanhol para que se sintam seus filmes, para que a gente se entregue a viagem percorrida pelos personagens, mesmo que nem sempre os compreendamos. Não que A Bela da Tarde seja demasiado obscuro, difícil ou incompreensível. Longe disso: talvez seja a mais acessível de suas obras ao grande público. Quase que impossível que alguém não se envolva pela trajetória de Severine e sua irremediável solidão, em paralelo com os homens que cruzam o seu caminho. Mesmo porque, caso a algum espectador a história não agrade, sempre haverá Deneuve como colírio durante toda a sessão.
quinta-feira, 14 de junho de 2007
O Cão Andaluz/ A Idade de Ouro
Bem, voltando a escrever sobre obras-primas do cinema, retorno aos filmes de Luis Buñuel, concentrando-me em suas duas primeiras obras, O Cão Andaluz e A Idade de Ouro, radicais experiências surrealistas, clássicos incontestáveis do cinema mundial.
Esses dois primeiros filmes de Buñuel (ainda mais por terem sido feitos em parceria com Salvador Dali) são mesmo de pirar a cabeça de qualquer espectador, surrealistas ao extremo e anárquicos por excelência. O primeiro, O Cão Andaluz, a despeito de suas quase oito décadas de existência, ainda é em seus dezesseis minutos de duração o curta-metragem mais famoso, original e importante da história do cinema. Os franceses estavam a uma década obcecados em novas formas da então novíssima linguagem cinematográfica, mais especificamente, realizando experiências de vanguarda geralmente com resultados bastante próximos do abstrato e do dadaísmo. Cão Andaluz não chegou a ser a primeira experiência surrealista do cinema. A honra coube á La Coquille et lê Clergyman, dirigido por Germaine Dulac a partir de um argumento do poeta Antonin Artaud. Cão Andaluz é uma estranha combinação de imagens paradoxais e aparentemente desarmônicas (quase que um aspecto semelhante à dita montagem de atrações, de Eisenstein), uma incessante busca do insólito, do gratuito e do absurdo, como que de encontro a novas formas de metáforas poético-visuais, resultando em efeitos advindos de uma exploração do inconsciente humano, ou então do puro acaso, transpondo um universo onírico, caótico.
O filme começa com a supracitada cena do olho aberto por uma navalha de barbear, em paralelo com a Lua sendo atravessada por uma nuvem negra. Uma das imagens mais emblemáticas do cinema, porém um emblema desprovido de significados. Cada espectador interpreta esse momento com o que essa imagem possa representar para si mesmo. Pode ser o corte da vida pela morte, o corte de um amor pelo abandono, o corte traumático da virgindade por uma má iniciação... Tanto faz. O inconsciente de cada olhar poderá conferir significado às imagens dessa obra-prima surrealista, mesmo que nenhuma interpretação possa ser considerada definitiva e nem totalmente satisfatória, muito menos coerente com as intenções dos realizadores, que juram que não tinham intenção alguma ao confeccionar o célebre curta-metragem.
Outras cenas delirantes se sucedem: formigas saindo de um inexplicável buraco na mão do homem, ou, um pouco antes, quando este adquire feições animalescas ao agarrar a mulher amada. Esta se desprende do sujeito, e quando ele tenta segurá-la entre os braços novamente, o homem é impedido de tocá-la por ele se encontrar preso por duas extensas cordas em que estão enlaçadas algumas abóboras, dois religiosos e um piano amarrado com jumentos mortos. Aos que pretenderam interpretar o filme como uma combinação do surrealismo com a psicanálise, essa cena bastante alegórica poder-se-ia explicar da seguinte maneira: O Amor (impulso do homem) e a sexualidade (as abóboras) são contrariados (as cordas) pelos preconceitos religiosos (os seminaristas) e pelos conceitos da burguesia (o piano). Como já havia referido agora a pouco, Buñuel seria o primeiro a desmentir qualquer interpretação simbólica nessa sua obra de estréia. Para ele, o roteiro do filme é formado por imagens surpreendentes e absurdas sem significado algum, um filme experimental em que a forma seria mais importante que qualquer conteúdo. “No fundo, não é nada mais do que um desesperado, um apaixonado apelo ao crime”, resumiria o cineasta espanhol. Se bem que sou daqueles que pensam que, depois de lançada ao mundo, os significados de qualquer obra deixam de pertencer exclusivamente ao realizador, passando para o espectador a tarefa de com os olhos apurados e mente aberta extrair todo tipo possível de simbologia no contexto da obra de arte (desde que cada interpretação seja perfeitamente plausível, diga-se de passagem).
O filme começa com a supracitada cena do olho aberto por uma navalha de barbear, em paralelo com a Lua sendo atravessada por uma nuvem negra. Uma das imagens mais emblemáticas do cinema, porém um emblema desprovido de significados. Cada espectador interpreta esse momento com o que essa imagem possa representar para si mesmo. Pode ser o corte da vida pela morte, o corte de um amor pelo abandono, o corte traumático da virgindade por uma má iniciação... Tanto faz. O inconsciente de cada olhar poderá conferir significado às imagens dessa obra-prima surrealista, mesmo que nenhuma interpretação possa ser considerada definitiva e nem totalmente satisfatória, muito menos coerente com as intenções dos realizadores, que juram que não tinham intenção alguma ao confeccionar o célebre curta-metragem.
Outras cenas delirantes se sucedem: formigas saindo de um inexplicável buraco na mão do homem, ou, um pouco antes, quando este adquire feições animalescas ao agarrar a mulher amada. Esta se desprende do sujeito, e quando ele tenta segurá-la entre os braços novamente, o homem é impedido de tocá-la por ele se encontrar preso por duas extensas cordas em que estão enlaçadas algumas abóboras, dois religiosos e um piano amarrado com jumentos mortos. Aos que pretenderam interpretar o filme como uma combinação do surrealismo com a psicanálise, essa cena bastante alegórica poder-se-ia explicar da seguinte maneira: O Amor (impulso do homem) e a sexualidade (as abóboras) são contrariados (as cordas) pelos preconceitos religiosos (os seminaristas) e pelos conceitos da burguesia (o piano). Como já havia referido agora a pouco, Buñuel seria o primeiro a desmentir qualquer interpretação simbólica nessa sua obra de estréia. Para ele, o roteiro do filme é formado por imagens surpreendentes e absurdas sem significado algum, um filme experimental em que a forma seria mais importante que qualquer conteúdo. “No fundo, não é nada mais do que um desesperado, um apaixonado apelo ao crime”, resumiria o cineasta espanhol. Se bem que sou daqueles que pensam que, depois de lançada ao mundo, os significados de qualquer obra deixam de pertencer exclusivamente ao realizador, passando para o espectador a tarefa de com os olhos apurados e mente aberta extrair todo tipo possível de simbologia no contexto da obra de arte (desde que cada interpretação seja perfeitamente plausível, diga-se de passagem).
Mesmo com essas descrições aparentemente malucas das imagens criadas por Buñuel e Dali, ao espectador curioso e de mente aberta O Cão Andaluz vai sempre representar uma experiência sensorial absorvente, a despeito de que ao longo das décadas o filme vem causando atração ou repulsa aos olhos de quem o vê. Particularmente, acho que mesmo não o entendendo, O Cão Andaluz fascina mais facilmente, ao contrário do posterior A Idade de Ouro, onde continua valendo a questão do aparente desprovimento de significados de suas imagens. Só que aqui não há o mesmo tour-de-force delirante de cada fotograma do curto e conciso O Cão Andaluz, que faz com que para muitos seja uma experiência absolutamente fascinante, porém esse segundo filme é de um longa-metragem sonoro relativamente mais contido, com a maioria de suas cenas aparentemente mais banais (mas só na aparência), e um tom quase próximo do documental (impressão advinda de uns fragmentos de cine-jornal de um documentário sobre escorpiões, que abrem o filme), mas nem por isso menos estranho e surreal. Há quem diga que era uma tentativa de abolir de uma vez certas tendências gratuitas da vanguarda francesa da década de 20, sendo considerado o ponto final dos cinemas dadaístas e surrealistas ortodoxos daquela época. Que seja. O que importa é que é o filme mais virulento e transgressor de Buñuel. Nessa fase de transição, A Idade de Ouro representa uma ponte com todo o posterior cinema de narrativas relativamente mais usuais de Buñuel, com sua rebeldia e inconformismo diante das convenções estabelecidas, nunca abrindo mão de inserir cenas surreais e oníricas, cheias de uma dureza e de um humor corrosivo nem sempre fáceis de assimilar num primeiro olhar.
Buñuel e Dali inspiraram-se em alguns temas de Freud, do Marquês de Sade e de Karl Marx para criar o argumento de A Idade de Ouro. Mesmo assim, durante a produção, Dali se desligou do projeto, sendo que a única cena que ele criou foi a que um personagem anda com uma pedra na cabeça igual à estátua que ele acabara de cruzar. Dessa vez, o protagonista é um anti-herói subversivo e herege que, ao mesmo tempo em que costuma chutar cachorros de rua, condena hábitos de caridade espancando um mendigo, desafia as convenções sociais fingindo servir à sociedade (numa cena, ele esbofeteia uma senhora apenas porque essa acidentalmente derramou um pouco de bebida em sua roupa), sempre movido por seus impulsos sexuais e selvagens, quase místicos. De fato, quase que um precursor de Alex Delarge de Laranja Mecânica de Stanley Kubrick. Em A Idade de Ouro, uma história de um amor louco jamais concretizado, o ódio e o sexo perpassam por toda a película(Buñuel chega a inserir em algumas cenas objetos com aparência de órgãos genitais, como em um momento que mostra os dois namorados beijando-se impetuosamente). Mesmo que os impulsos irresistíveis façam com que o protagonista caia nos braços do personagem principal feminino do filme, esta nunca está satisfeita com o seu amor. Além de cenas que sugerem a masturbação da personagem, (como a que ela chupa os dedos de uma estátua), no final ela o abandona para se unir a um regente de orquestra. O anti-herói dá vazão a toda a sua fúria jogando para fora da janela uma árvore em chamas, um bispo e uma girafa de pau.
Buñuel e Dali inspiraram-se em alguns temas de Freud, do Marquês de Sade e de Karl Marx para criar o argumento de A Idade de Ouro. Mesmo assim, durante a produção, Dali se desligou do projeto, sendo que a única cena que ele criou foi a que um personagem anda com uma pedra na cabeça igual à estátua que ele acabara de cruzar. Dessa vez, o protagonista é um anti-herói subversivo e herege que, ao mesmo tempo em que costuma chutar cachorros de rua, condena hábitos de caridade espancando um mendigo, desafia as convenções sociais fingindo servir à sociedade (numa cena, ele esbofeteia uma senhora apenas porque essa acidentalmente derramou um pouco de bebida em sua roupa), sempre movido por seus impulsos sexuais e selvagens, quase místicos. De fato, quase que um precursor de Alex Delarge de Laranja Mecânica de Stanley Kubrick. Em A Idade de Ouro, uma história de um amor louco jamais concretizado, o ódio e o sexo perpassam por toda a película(Buñuel chega a inserir em algumas cenas objetos com aparência de órgãos genitais, como em um momento que mostra os dois namorados beijando-se impetuosamente). Mesmo que os impulsos irresistíveis façam com que o protagonista caia nos braços do personagem principal feminino do filme, esta nunca está satisfeita com o seu amor. Além de cenas que sugerem a masturbação da personagem, (como a que ela chupa os dedos de uma estátua), no final ela o abandona para se unir a um regente de orquestra. O anti-herói dá vazão a toda a sua fúria jogando para fora da janela uma árvore em chamas, um bispo e uma girafa de pau.
Aqui as imagens não querem soltar apenas o inconsciente, mas também libertar os homens das amarras sociais impostas pela sociedade, pelas instituições (mesmo que não haja significados, a não ser os que repousam na psique de cada um). Numa das cenas, durante uma elegante reunião de burgueses, vê-se atravessar pela sala carroças dentro das quais trabalhadores bebem vinho tinto. A indiferença com a aristocracia presente trata desse fato é a mesma com que numa outra cena uma mulher ordena para que uma vaca deitada em sua cama se retire do quarto.
No final, uma rebelião extermina centenas de pessoas por causa dessa indiferença toda. Os quatro sobreviventes desse massacre, após 120 dias de orgia (trecho adaptado da história de Sade), são vistos saindo do castelo em direção à Paris, guiados pelo Duque de Blangis com uma indisfarçável aparência de Jesus Cristo (o próprio!). Desfecho brilhante e totalmente coerente com os propósitos do mestre do surrealismo sempre disposto a construir suas provocantes críticas à sociedade, no caso do final de A Idade de Ouro, uma cena que mereceu de Henry Miller um artigo intitulado com muita propriedade de Orgia Divina.
Para encerrar exemplificando toda a polêmica desse filme, basta dizer que, depois que os cinemas na estréia do filme tiveram suas sessões impossibilitadas pelos atos de vandalismo dos radicais que destruíram poltronas e atiraram bombas sobre a tela, A Idade de Ouro foi interditado na França por cinco décadas inteiras! Depois desses filme, Buñuel teve que partir para a Espanha, onde assumiu de vez uma tomada de consciência social realizando um documentário sobre as péssimas condições uma região miserável de seu de seu país, visto por muitos críticos quase que como um prenúncio do terror da Guerra Civil Espanhola. De qualquer modo, sem conseguir financiamento para filme qualquer na Europa, acabou indo para o México, onde começou realizando filmes comerciais, melodramas musicais baratos. Mas sua força criadora permaneceu viva e, quando no mundo civilizado ninguém lembrava mais dele, ressurgiu realizando grandes filmes que jogaram os holofotes novamente em torno dele, possibilitando que ele retornasse à Europa para realizar na Espanha a obra-prima Viridiana, prontamente causadora de muitas polêmicas e logo proibida, o que fez com que Buñuel se retirasse da Espanha novamente para regressar ao México e dirigir o seu melhor filme: O Anjo Exterminador(comentado outro dia aqui nesse blog).
segunda-feira, 11 de junho de 2007
Crônica do Dia dos Namorados
Posso levantar as mãos para o céu e agradecer pelo lucro que tive nesse 12 de junho Dia dos Namorados. Se eu tivesse namorada, teria que gastar uma boa porcentagem de minha renda em algum presente muito bonito (e consequentemente caro): um perfume sofisticado, uma lingerie atraente... Em vez disso, pude me dar ao luxo de investir meu escasso dinheirinho em doze dvds que comprei da loja virtual da 2001 para pagar parcelado no cartão de crédito. Se a VISA não tiver que colocar a Policia atrás de mim para me cobrar caso eu não puder pagar esses filmes, nos próximos meses terei praticamente um acervo inestimável de clássicos do cinema:alguns dos primeiros filmes de David Lean ( Grandes Esperanças e Uma Mulher do Outro Mundo), dois Hitchcock da fase inglesa ( Sabotagem e Jovem e Inocente), três clássicos da dupla de realizadores Michael Powell e Emeric Pressburger (Coronel Blimp – Vida e Morte, Narciso Negro e Sapatinhos Vermelhos), Henrique V, de Laurence Olivier, a produção alemã O Tambor, o japonês Furyo – Em Sua Honra. O extraordinário Sindicato de Ladrões, que em seu estupendo argumento tem, entre outros méritos, pela primeira vez apresentar Marlon Brando apanhando que nem mulher de brigadiano (acreditem, a partir desse filme isso se tornaria constante na carreira de Brando, que na maioria de seus filmes insistia com os diretores para que adicionassem cenas de agressão sadomasoquistas sofridas por seus personagens), E para coroar esse conjunto de obras-primas que presenteei a mim mesmo em pleno mês do Dia dos Namorados, um cult contemporâneo (e imprescindível) de David Cronenberg (para mim, o melhor filme do diretor canadense): Mistérios e Paixões. Para quem não conhece, essa adaptação da obra do escritor beat William Burroughs é sobre um escritor que trabalha como exterminador de baratas, cuja esposa é viciada no inseticida com que ele trabalha. Um delírio surreal que envolve insetos que falam, máquinas de escrever cujas teclas literalmente brigam com o escritor, tudo pontuado sob um belíssimo sax da trilha jazzística. Impagável.
Enfim, doze de junho é o melhor dia do ano para não se ter uma namorada. Não que eu abomine namoros ou namoradas. É que simplesmente detesto datas comerciais como essa ( da mesma forma forma que não vejo graça nenhuma nem no meu aniversário, que para mim é uma data qualquer), bem como o Natal, Ano-Novo, Páscoa, etc. Sou pobre de nascimento e solteiro por convicção. Considero-me um cara legal, um sujeito realmente bacana, porém nenhuma mulher me suportaria mais do que dez horas seguidas. Gosto de mulheres e de relacionamentos, mas prefiro construir sólidas histórias de amor com as que tenho afinidades pessoais e oportunidades de convivência, sem necessariamente ter que me prender à compromissos morais que estejam à um passo de algo próximo do que é o matrimônio, ou estar atado à fortes laços que ocupariam um espaço imprescindível de minha privacidade. Preciso de tempo para os livros que ainda tenho que escrever, ao mesmo tempo em que não posso abrir mão das muitas horas necessárias para deglutir a quantidade ilimitada de obras cinematográficas que ainda tenho que ver/rever. Sem falar nas mulheres com as quais não possuo afinidade nenhuma, cujos níveis culturais estão abaixo de zero, e que infelizmente parecem compor a estúpida maioria da ala feminina que nos últimos anos foi educada por uma novela de conteúdo tão tosco e de profunda superficialidade como (apenas para citar um exemplo) o seriado de TV Malhação. Uma pena que um programinha desses pareça ter definido o padrão de estilo de garotas da atualidade. Não que seja necessário que as mulheres conheçam a obra de Dostoievski do primeiro ao último volume. Porém um mínimo de afinidade é primordial para o estabelecimento de uma relação, para o surgimento de uma cumplicidade, um envolvimento maior. Como conviver com uma mulher que não está nem aí quando tentamos convencê-la da grandeza dos filmes de Stanley Kubrick (apenas para citar mais um exemplo óbvio)? Ou da maravilhosa obra de Luchino Visconti? Ou com aquelas que não querem nem ouvir a hipótese de ler os escritos cintilantes de Clarice Lispector? O pior é quando se fala em baladas...Apesar de gostar de beber e sair á noite, odeio esse tipo de lugar onde cobram uma entrada caríssima para ingressar num salão com música horrenda tocando altíssimo, tornando inviável qualquer conversa que se queira estabelecer, pois é praticamente impossível escutar o que a pessoa ao lado diz.
Mas não sejamos tão pessimistas. A par de minha vontade em escrever um texto com a minha peculiar e sombria visão niilista do mundo, existem sim mulheres maravilhosas cujas companhias são um privilégio indescritiveis para nós homens. Mas que nesse Dia dos Namorados eu tive um lucro e tanto, isso eu não poderia negar.
Enfim, doze de junho é o melhor dia do ano para não se ter uma namorada. Não que eu abomine namoros ou namoradas. É que simplesmente detesto datas comerciais como essa ( da mesma forma forma que não vejo graça nenhuma nem no meu aniversário, que para mim é uma data qualquer), bem como o Natal, Ano-Novo, Páscoa, etc. Sou pobre de nascimento e solteiro por convicção. Considero-me um cara legal, um sujeito realmente bacana, porém nenhuma mulher me suportaria mais do que dez horas seguidas. Gosto de mulheres e de relacionamentos, mas prefiro construir sólidas histórias de amor com as que tenho afinidades pessoais e oportunidades de convivência, sem necessariamente ter que me prender à compromissos morais que estejam à um passo de algo próximo do que é o matrimônio, ou estar atado à fortes laços que ocupariam um espaço imprescindível de minha privacidade. Preciso de tempo para os livros que ainda tenho que escrever, ao mesmo tempo em que não posso abrir mão das muitas horas necessárias para deglutir a quantidade ilimitada de obras cinematográficas que ainda tenho que ver/rever. Sem falar nas mulheres com as quais não possuo afinidade nenhuma, cujos níveis culturais estão abaixo de zero, e que infelizmente parecem compor a estúpida maioria da ala feminina que nos últimos anos foi educada por uma novela de conteúdo tão tosco e de profunda superficialidade como (apenas para citar um exemplo) o seriado de TV Malhação. Uma pena que um programinha desses pareça ter definido o padrão de estilo de garotas da atualidade. Não que seja necessário que as mulheres conheçam a obra de Dostoievski do primeiro ao último volume. Porém um mínimo de afinidade é primordial para o estabelecimento de uma relação, para o surgimento de uma cumplicidade, um envolvimento maior. Como conviver com uma mulher que não está nem aí quando tentamos convencê-la da grandeza dos filmes de Stanley Kubrick (apenas para citar mais um exemplo óbvio)? Ou da maravilhosa obra de Luchino Visconti? Ou com aquelas que não querem nem ouvir a hipótese de ler os escritos cintilantes de Clarice Lispector? O pior é quando se fala em baladas...Apesar de gostar de beber e sair á noite, odeio esse tipo de lugar onde cobram uma entrada caríssima para ingressar num salão com música horrenda tocando altíssimo, tornando inviável qualquer conversa que se queira estabelecer, pois é praticamente impossível escutar o que a pessoa ao lado diz.
Mas não sejamos tão pessimistas. A par de minha vontade em escrever um texto com a minha peculiar e sombria visão niilista do mundo, existem sim mulheres maravilhosas cujas companhias são um privilégio indescritiveis para nós homens. Mas que nesse Dia dos Namorados eu tive um lucro e tanto, isso eu não poderia negar.
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