terça-feira, 19 de junho de 2007

A Bela da Tarde

Em meados da agitadíssima década de 60, após já ter construído uma gloriosa carreira de grandes filmes (a maioria verdadeiras obras-primas), Buñuel pôde sair do México para voltar a filmar na França, quase quarenta anos depois de ter sido praticamente expulso de Paris após a escandalosa, tumultuada e maldita exibição do clássico surrealista A Idade de Ouro, prontamente interditado na época. Na verdade, no final dos anos 50, em meio à sua carreira mexicana, o cineasta espanhol realizou três filmes na França (Cela s’Appelle l’Aurore e La Mort em ce Jardin), ao mesmo tempo em que também filmou na França (Viridiana) e até nos Estados Unidos (The Young One), para logo em seguida voltar ao México e realizar o extraordinário O Anjo Exterminador. Depois de um outro filme francês (O Diário de uma Camareira), ele faria o seu último filme mexicano (Simon del Desierto), para voltar ao solo francês e se estabelecer em definitivo em Paris, consagrando-se com o absoluto sucesso de público e de critica de A bela da Tarde, de 1967.
"Belle de Jour foi talvez o maior êxito comercial de minha vida o qual atribuo mais às prostitutas do filme do que propriamente ao meu trabalho", diria o cineasta. De fato, talvez seja o filme mais nelsonrodrigueano que já tenha sido feito no mundo, pelo menos fora do Brasil. Para um fanático que nem eu pela obra do dramaturgo carioca, a associação de seu nome com o filme de Buñuel é quase inevitável. Pena que aqui no Brasil não houvesse gênios o suficiente para filmar histórias do Nelson com a qualidade vista em A Bela da Tarde (esse é o típico filme, na época em que as produções brasileiras investiam pesado em sexo e nudez, que por aqui tantos tentaram fazer porém nunca conseguiram) . Mas deixemos o escritor brasileiro de lado, mesmo porque seu nome não tem nada a ver com o filme de Buñuel, que é uma adaptação do romance de Joseph Kessel. Uma estranha e fascinante mistura de realidade e imaginação, fatos e devaneios, verdades e sonhos, na insólita história das desventuras de Séverine Serizy (a deusa Catherine Deneuve, mais atraente do que nunca), a delicada, sedutora e entediada esposa de um médico burguês com quem mantém uma fria e distante relação, e que, atraída pela prostituição, resolve freqüentar durante as tardes um bordel parisiense que encontrara quase que por acaso, onde se envolve com situações diversas e se relaciona com um estranho e violento marginal (talvez o mais sincero de todos os personagens que desfilam pelos fotogramas do filme de Buñuel). Ela carrega certa frustração emocional e sexual bastante forte, com necessidade de rever conceitos e satisfazer anseios e impulsos sufocados em sua vida esmaecida. Severine precisa respirar, quer emoção, perigo e aventura, ou simplesmente deseja experimentar o desconhecido, arriscar-se no terreno do que não lhe é permitido. A principio receosa, ela acaba-se se entregando as todas às suas taras, desejos e obsessões recalcados, visto que ela se satisfaz com o ultraje físico e moral, libertando suas perversões de burguesa enfastiada, contrariando os ditames do catolicismo e da hipocrisia social, que a aprisionavam, e contra os quais Buñuel dirige sua severa, violenta e habitual crítica devastadora. Séverine sucumbe aos açoites, à submissão e humilhação sexual, lama na cara e outras agressões verbais (tipo “puta” e “vagabunda”).

Quantas mulheres devem ter esses mesmos desejos que Severine, querer ter uma vida (ou pelo menos, um dia) de Bela da Tarde? O mais provável é que a maioria mal admita para si mesma essa idéia. O recado de Buñuel é que se tais desejos forem ignorados, podem destruir, dilacerar brutalmente a personalidade e os mais caros laços de afeto por si mesmo de cada individuo, como ilustrado no desfecho do filme, que sugere que aquela vida dupla de Severine não tenha puramente passado de fruto do êxtase do seu imaginário infeliz, um sonho em suspenso. Mesmo com tanta intensidade, Buñuel não se excede nas diversas e delirantes situações eróticas do enredo, construindo com segurança e rara sutileza e equilíbrio uma insinuante história de sexualidade reprimida, sem que em nenhum momento resvale na pornografia ou caia em qualquer tipo de exageros (mesmo as cenas de nudez são muito poucas).

No inicio do filme, Séverine está a passear com o marido quando este ordena que ela desça do carro de viagem e pede aos cocheiros que a chicoteiem violentamente, cena de gozo pessoal da protagonista seguida por uma outra cena de violação, tudo sonho e fantasia da mulher mal-amada. Quem garante que as cenas no bordel não seriam também resultados dos devaneios que a infeliz esposa habituara-se a viver? Buñuel não deixa nada explicado, e o que resulta numa deliciosa dúvida a que a platéia não precisa se dar ao trabalho de resolver. Como nas melhores obras do mestre, tudo não passa de um convite do cineasta espanhol para que se sintam seus filmes, para que a gente se entregue a viagem percorrida pelos personagens, mesmo que nem sempre os compreendamos. Não que A Bela da Tarde seja demasiado obscuro, difícil ou incompreensível. Longe disso: talvez seja a mais acessível de suas obras ao grande público. Quase que impossível que alguém não se envolva pela trajetória de Severine e sua irremediável solidão, em paralelo com os homens que cruzam o seu caminho. Mesmo porque, caso a algum espectador a história não agrade, sempre haverá Deneuve como colírio durante toda a sessão.

2 comentários:

Anônimo disse...

Este é um dos mais belos filmes que já vi, o olhar de Severine sobre o mundo...vc tem razão, eu queria ter um dia de Severine e acho que outras mulheres também.

Anônimo disse...

Definitivamente um ótimo filme, a tão frustada Séverine, o marido frio, o marginal, a cafetina... uma mistura de personagens tão diferentes e tão próximos (linda a cena em que Séverine diz que nunca amou tanto o marido).
A fantasia da belle de jour resume-se a apenas frustração, ela esperava bem mais do casamento mas por vergonha ficou presa a uma vida de dona de casa, o desejo de mudar isso, se ser mais que uma senhora de respeito a faz correr para o bordel e experimentar a vida (as cenas de 120 dias de sodoma inceridas no filme ficararam, simplesmente, castas! deixar Sade casto não é para qualquer um!).

Obviamente o final mostra (desenha, grita) que era apenas uma fantasia da cabeça da mulher. A temática é maravilhosa, a Catherine se supera com sua cabeleira dourada, o figurino! Meu deus! O figurino é espetacular, das lingeries aos casacos de pele...
Além do mais é um filme em francês, quer charme maior que esse?

Beijos, Nabokov! E muito obrigada por ter me passado tais titulos, comente sobre a Dama de Shangai... s'll vous plaît!

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