domingo, 27 de maio de 2007

O Anjo Exterminador


Luis Buñuel passou para a história do cinema como o autêntico “mestre do surrealismo”. Uma definição categórica que peca pelo simplismo da afirmação, que, entretanto, não deixa de ser verdadeira. Na real, o surrealismo puro de Buñuel está em O Cão Andaluz, o delirante curta totalmente formado por idéias desconexas que o cineasta espanhol alinhou com perfeição em seu trabalho em conjunto com Salvador Dali. Daí em diante, Buñuel faria filmes menos anticonvencionais, porém quase sempre inserindo em maior ou menor grau a carga de surrealismo que ficou marcado em sua persona cinematográfica.

Legitimo cineasta cidadão do mundo, cigano que realizou obras-primas na França, Espanha e México, foi no Terceiro Mundo do país latino-americano que, entre outros filmes, realizou uma das obras indispensáveis da sétima arte: O Anjo Exterminador. A principio visivelmente inspirado no clássico A Regra do Jogo, no filme de Buñuel pessoas da alta sociedade se reúnem para jantar na casa de uma família burguesa. Até ai tudo bem, o espectador desprevenido poderá até se cansar nos primeiros 20, 30 minutos assistindo as mordomias dos milionários superficiais em cenas registradas pela câmera do extraordinário fotógrafo Gabriel Figueroa. Mas por alguma razão, depois de terminado o jantar ninguém consegue sair da casa, o que era uma reunião de confraternização entre amigos se transforma em um pesadelo, uma realidade na qual nenhum deles consegue escapar. O fato deles simplesmente não conseguirem sair do casarão é absurdamente surreal porém vai se camuflando de concreto de uma forma sutil e genial, quase que uma verdade absoluta que obrigam a todos a aceitarem a situação sem questioná-la. Noite após noite, dia-a-dia como em um dos tantos realites-shows da era moderna, tensos, assustados, enclausurados, com sentimentos de claustrofobia e tudo o mais, cada um dos convivas vai perdendo a educação, o refinamento, os bons-modos, as boas maneiras e os costumes delicados, cedendo lugar para a selvageria adormecida dentro de todo ser humano, assumindo de vez atitudes animalescas que lhe são inerentes em busca da sobrevivência. Cada um deles perde a preocupação com as elegâncias do vestuário e com a higiene, o que antes pareciam ser um grupo de pessoas organizadas, elegantes e regradas revelam-se diante dos outros certos desleixos com roupas e aparências, cabelos despenteados, barba por fazer, todos imundos, famintos e desesperados. É espantoso que naquele antro de homens e mulheres grãos-finos se manifestem a total falta de controle sobre os rumos imprevistos que suas vidas vão tomando, a desorganização e incapacidade com que enfrentam aquela situação aparentemente tão normal que se lhes apresenta tão incomum, tornando-se cada vez mais caótica. Ao se obrigarem a se despojar da luxuria e do conforto, a loucura vai tomando conta de cada um dos personagens principais, que antes tão polidos, gentis e educados com os colegas, abandonam de vez toda a falsidade para se jogarem impropérios na cara do outro, entregando-se à total desconsideração ao próximo.

Detalhe: os mordomos e empregados haviam se retirado da casa no meio do jantar, no inicio do filme, deixando os anfitriões e seus convidados à mercê da própria sorte. Entregues a si mesmos, sem o amparo e os préstimos da classe trabalhadora, aqueles burgueses do filme de Buñuel são incapazes de se virarem sozinhos, sem condições de saírem daquela casa cheia de portas como se estivessem naufragados em uma ilha qualquer. Em certo momento um dos personagens comenta como na verdade é fácil demais sair à hora que se quisesse daquela residência, porém o surrealismo de Buñuel faz com que a afirmação soe totalmente falsa transformando a possibilidade onírica do enredo do filme numa metáfora do mundo social em que a classe alta sente dificuldade (ou mesmo impossibilidade) de contornar e superar qualquer problema sem a ajuda e resolução de seus empregados da classe baixa. As situações absurdas enfileiram-se diante do olhar espantado do espectador: os surtos dos personagens os levam a quebrar a parede para achar água enquanto que na cozinha onde se encontram ursos e cabras há água à vontade para beber em copos de cristal. Enquanto as máscaras caem, eles vão lutando por beber os goles d’água. O sarcasmo e ironia do diretor estão em cada frame do filme.

Dez anos depois, residindo na França, Buñuel retomaria uma premissa bastante parecida com ainda mais humor surrealista na delirante comédia O Discreto Charme da Burguesia, mais uma mescla de sonho e realidade como veiculo de símbolos e metáforas.

Um comentário:

Henry Aldrovani disse...

Esse filme é uma obra-prima! Buñuel era um mestre.
Seria muito bom ler sobre outros filmes do cineasta espanhol aqui nesse espaço...

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