quarta-feira, 11 de abril de 2007

Jean-Luc Godard ( Parte 3) - O Desprezo





Terminando, enfim, a série de comentários a respeito dos filmes de Godard que até o momento tive a oportunidade de assistir, chegamos a O Desprezo, realizado em 1963 com produção do falecido Carlo Ponti. (que também produziu o anterior e mais arrojado Tempo de Guerra). Embora Tempo de Guerra seja considerado mais anticomercial (ou exatamente por isso), sempre me pareceu que O Desprezo tivesse um apelo comercial maior que os outros filmes do cineasta. Não que isso seja pejorativo, ao contrário (como tratarei de explicar mais adiante nesse mesmo texto). Em vez de Anna Karina (esposa e estrela dos filmes de Godard nessa época), o filme é estrelado por Brigitte Bardot, o nome mais popular da França na década de 60. Temos também um ator americano (Jack Palance) e a participação do lendário Fritz Lang no elenco. E parece que esse filme teve uma distribuição melhor nos EUA do que os outros filmes do cineasta, embora não tenha deixado de ser, como via de regra na carreira do cineasta depois de Acossado, um grande fracasso de público.


No entanto, não é essas referências o que mais surpreende em O Desprezo. Nota-se aqui um tratamento diferenciado na narrativa, o mais próximo da linguagem tradicional do cinema que Jean-Luc Godard realizou em sua filmografia. O filme é bem mais elaborado em direção ao sentido clássico da forma do cinema convencional, quase alcançando tons de tragédia em muitas de suas cenas. Provavelmente é o seu filme mais linear, o mais fácil de assistir e, consequentemente, o mais envolvente de todos que o diretor fez em sua carreira. Por isso que mesmo muitos dos detratores de Godard não hesitam em elevar o valor desse filme como modo de denegrir o restante da filmografia do polêmico cineasta. Porque se muitas das experiências vanguardistas do cineasta hoje em dia, para muitos, soam ultrapassadas, datadas e envelhecidas dentro do contexto de uma arte como o cinema que tomou rumos diferentes do que foi proposto por Godard e seus colegas na década de 60, exatamente por isso que O Desprezo é um dos filmes que melhor lucrou com a passagem do tempo. Se por muito tempo foi um filme um pouco desconsiderado, meio que deixado de lado, à sombra de outros mais famosos desse período, com o tempo foi adquirindo aos olhos dos espectadores uma grandeza inegável, digamos que para muitos é o grande filme do diretor (junto com Acossado, é claro). Ele oferece uma aproximação com o espectador de uma maneira pouco usual na obra do diretor francês, que sempre se acostumou em provocar nas platéias um desconforto total por querer destruir o modo alienante como o público se comporta diante de uma película. O Desprezo quase que representa uma pausa no estranhamento que nos causa a filmografia godardiana. O melhor é que, mesmo com essa abordagem diferente do cineasta, o filme ainda assim carrega marcas registradas do seu autor. Porque se na forma é o menos anticonvencional de Godard, em seu conteúdo sentimos intrínseca a maioria das características que fazem com que Godard, para o bem ou para o mal, seja o que ele sempre foi. Digamos que seja uma síntese perfeita entre o classicismo e a vanguarda. Ainda bem, senão não seria um filme digno da fama do seu diretor e não faria por valer a pena ficar discorrendo dele aqui nesse espaço.


Aqui Godard expande os seus temas para o mundo do cinema, debruçando-se sobre a sétima arte como modo de despertar reflexões no espectador. O filme trata da relação dos envolvidos com o meio cinematográfico. Numa declaração do diretor, o filme é sobre a "relação dos envolvidos com o mundo cinematográfico o modo como são afetados por pessoas que se observam e se julgam, e depois são, por sua vez, observadas e julgadas pelo cinema”. A câmara disseca em tomadas maravilhosas os movimentos dos atores como que contemplando fabulosas esculturas em paralelo às volumosas estátuas gregas mostradas no decorrer do filme, pontuado por uma belíssima trilha sonora de Georges Delerues, que se encarrega de realçar as pinceladas trágicas da historia. Ouvi dizer que haviam encomendado a Godard uma comédia romântica estrelada por Brigitte Bardot, mas ele preferiu carregar na densidade, melancolia, amargura. Um clima angustiante, mas ainda assim diferente das obras de Bergman e Antonioni (cineastas famosos por abordar a angustia como temas principais), pelo fato de que Godard investiu em um lado poético como uma forma alternativa de acompanhar a tristeza do filme, também carregado com um humor indisfarçável que torna a tristeza expressa mais suportável. Em sua aparência tão banal, uma obra de arte. Um casal entediado (Michel Piccoli e Bardot) sente a relação se desgastar enquanto trabalham numa filmagem realizada na Ilha de Capri, mas não se decidem a terminar a união por questão de pura preguiça. Dentro de um apartamento, a todo o momento parece que o casal vai se reconciliar, no entanto um dos dois sempre fala algo ou descobre alguma coisa, e então eles voltam a brigar. O jogo de cores se encarrega de ilustrar o vazio existencial dos personagens, com o colorido dos móveis em contraste com o branco das paredes do apartamento, e as brincadeiras com a peruca morena usada pela loira protagonista, como que assim adquirisse uma outra identidade. Um relacionamento se desfazendo, as pequenas causas das grandes mágoas, a sensação desagradável de que ele (o roteirista) pode ou não ter oferecido a mulher ao produtor para obter o trabalho. Vitimas da crise de identificação de um com o outro, perda da atração física, desinteresse da mulher pelo homem que um dia amou. O diálogo da reconciliação teima em nunca aparecer, como se houvesse a força de deuses estranhos agindo no dia-a-dia dos personagens. Eles deixam de ser marido e mulher para virar marionetes nas mãos das circunstâncias do meio artístico em que convivem. Nota-se quase que uma metáfora da indústria do cinema. Além da relação do casal, há o diretor Fritz Lang (o próprio) lutando por conservar a originalidade da obra que estão adaptando, e o produtor voltado para as leis do mercado. "Cada vez que ouço falar em cultura, saco o meu talão de cheque", é o que pronuncia o produtor, emulando a famosa tirada de Goebbels. Uma obra-prima. E para complementar, poucas vezes um filme mostrou tanta beleza quanto nas cenas em que Brigitte Bardot aparece com ou sem roupa.


Dez anos depois seria a vez do colega François Truffaut realizar um filme envolvendo o mundo do cinema. Godard detestou esse filme do seu conterrâneo, o que contribuiu para o rompimento definitivo de uma amizade que há anos já não era mais a mesma. Houve briga feia entre os dois. Enquanto que O Desprezo vem permanecendo por décadas como um filme obscuro, A Noite Americana foi sucesso desde o lançamento, tendo conquistado até o Oscar. Injustiça. Truffuat rendeu-se ao comercialismo realizando um filme que, embora belo e com qualidade, é hollywoodiano demais para um cineasta europeu, quase que uma traição a si mesmo. Um filme que não tem o aspecto instigante que torna O Desprezo tão fascinante e sedutor.

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